Da partilha em vida: considerações da doutrina e da jurisprudência Brasileira.

O Direito das Sucessões, no caso a partilha de bens em vida, tem ganhado evidência nos últimos tempos. Apesar de ser assunto que para algumas famílias tradicionais, é tratado com determinada reserva, a pandemia do coronavírus conseguiu com que este tema fosse pensado e discutido, quando da perda de um ente familiar, o que para alguns é chamado ainda de planejamento sucessório.

A partilha de bens em vida, nada mais é que uma antecipação da divisão de bens patrimoniais, com uma vantagem de evitar conflitos entre os herdeiros, além de dispensar o inventário após a morte do titular dos bens.

No sistema jurídico do Brasil, são admitidos três formas de partilha de bens em vida: por via do testamento, da doação e inter vivos.

Nos ocupamos de investigar o que a doutrina do Direito Civil nos traz de relevante, e qual a problemática encontrada solucionada pela jurisprudência Brasileira.

A partilha em vida, tem respaldo na lei, no artigo 2.018 do Código Civil de 2002:

"É válida a partilha feita por ascendente, por ato entre vivos ou de última vontade, contanto que não prejudique a legítima dos herdeiros necessários".

Flávio Tartuce (2020, p. 1.638), acerca da temática esclarece que:

"Essa constitui a forma de partilha feita por ascendente a descendentes, por ato inter vivos ou de última vontade, abrangendo os seus bens de forma total ou parcial, desde que respeitados os parâmetros legais, caso da reserva da legítima (art. 2.018 do CC/2002). Cite-se, ainda, a tutela do mínimo para que o estipulante viva com dignidade, na linha da tese do estatuto jurídico do patrimônio mínimo, que pode ser retirada, por exemplo, do art. 548 do Código Civil, dispositivo que veda a doação universal, de todos os bens, sem a reserva do mínimo para a sobrevivência do doador".

No entanto, o artigo 1.973 do Código Civil, também é aplicável em caso de herdeiro necessário que no momento da partilha, não se tinha conhecimento, este dispositivo trata do rompimento da partilha ou testamento,  devendo ser realizado então pelas vias ordinárias.

Cita-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, pelo entendimento de que eventual prejuízo à legítima do herdeiro necessário, deve ser buscada pela via anulatória e não por ação de inventário:


RECURSO ESPECIAL. DIREITO DAS SUCESSÕES. PARTILHA EM VIDA FEITA PELOS ASCENDENTES AOS DESCENDENTES DE TODOS OS BENS DE QUE DISPUNHAM POR MEIO DE ESCRITURAS PÚBLICAS DE DOAÇÃO, COM CONSENTIMENTO DOS HERDEIROS E CONSIGNAÇÃO DE DISPENSA DE COLAÇÃO FUTURA. 1. OMISSÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO. INEXISTÊNCIA. 2. AUSÊNCIA DE BENS A COLACIONAR. INVENTÁRIO. PROCESSO EXTINTO POR CARÊNCIA DA AÇÃO. 3. RECURSO DESPROVIDO. 1. Embora rejeitados os embargos de declaração, a matéria controvertida foi devidamente enfrentada pelo Colegiado de origem, que sobre ela emitiu pronunciamento de forma fundamentada, com enfoque suficiente a autorizar o conhecimento do recurso especial, não havendo que se falar em ofensa ao art. 535, II, do CPC. 2. Consoante dispõe o art. 2.002 do CC, os descendentes que concorrerem à sucessão do ascendente comum são obrigados, para igualar as legítimas, a conferir o valor das doações que dele em vida receberam, sob pena de sonegação. 3. Todavia, o dever de colacionar os bens admite exceções, sendo de ressaltar, entre elas, as doações que o doador determinar saiam da parte disponível, contanto que não a excedam, computado o seu valor ao tempo da doação (CC, art. 2005), ou, como no caso, em que os pais doaram aos filhos todos os bens de que dispunham, com o consentimento destes, fazendo constar, expressamente, dos atos constitutivos de partilha em vida, a dispensa de colação futura, carecendo o ora recorrente, portanto, de interesse processual para ingressar com processo de inventário, que foi corretamente extinto (CPC, art. 267, VI). 4. Eventual prejuízo à legítima do herdeiro necessário, em decorrência da partilha em vida dos bens, deve ser buscada pela via anulatória apropriada e não por meio de ação de inventário. Afinal, se não há bens a serem partilhados, não há a necessidade de inventário. 5. Recurso especial a que se nega provimento. (STJ - REsp: 1523552 PR 2015/0069008-1, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 03/11/2015, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/11/2015)


Em outro caso, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais aplicou o princípio da boa fé objetiva, em partilha feita de um único bem a um dos herdeiros com a anuência dos demais, não havendo em se falar de anulação da partilha:

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OPOSIÇÃO À AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ESCRITURA. DOAÇÃO DE ÚNICO IMÓVEL PARA UM DOS QUATRO FILHOS DO CASAL, COM EXPRESSA ANUÊNCIA DOS DEMAIS E RESERVA DE USUFRUTO E SEM CLÁUSULA DE REVERSÃO. NEGÓCIO JURÍDICO VÁLIDO COMO PARTILHA EM VIDA, INCLUSIVE TENDO SIDO FORMALMENTE DISPENSADA A COLAÇÃO. VIOLAÇÃO AO ART. 549 DO CCB, POR AUSÊNCIA DE PROTEÇÃO À LEGÍTIMA. INOCORRÊNCIA. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. BOA-FÉ OBJETIVA. VALIDADE DO ATO. ANULAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. REFORMA DA SENTENÇA. I- Embora, em regra, seja nula a doação de imóvel de ascendente para descendente, sem proteção da legítima dos demais futuros herdeiros do doador, a teor do art. 549 do CCB, é válido o negócio jurídico sui generis objeto da lide, consubstanciado em real partilha em vida do único bem, com anuência de todos os interessados, reserva de usufruto e dispensa expressa de colação, devendo ser entendido como válido, ainda mais se não provado vício de vontade, sob pena de violação ao princípio da boa-fé objetiva, previsto no art. 113 do CCB. II- Recurso conhecido e provido.(TJ-MG - AC: 10024141029041001 Belo Horizonte, Relator: Vicente de Oliveira Silva, Data de Julgamento: 30/05/2017, Câmaras Cíveis / 10ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 30/06/2017)

 

Destaca o civilista contemporâneo Flávio Tartuce (2021, p.1.638), "Como outro exemplo de partilha em vida, cite-se, ainda, a corriqueira forma de planejamento sucessório, em que um dos ascendentes – principalmente nos casos de falecimento de seu cônjuge – realiza a doação de todos os seus bens aos descendentes, mantendo-se a igualdade de quinhões e a proteção da legítima. É comum, em caso tais, a reserva para o doador do usufruto dos bens, que será extinto quando da sua morte, consolidando a propriedade plena em favor dos herdeiros antes beneficiados".

Paulo Lôbo (2021, p. 142), acrescenta que, "Essa modalidade genuína de partilha em vida, com finalidade de antecipação da partilha da herança, mas sem antecipação das titularidades, não é exclusiva, nada impedindo que ela se dê também mediante doação única aos herdeiros, com identificação de suas partes, com ou sem reserva de usufruto ao autor, no que igualmente se realizaria a função social da norma. Nesse sentido, disse Clóvis Beviláqua (2000, § 104) que a partilha em vida “vale como doação entre vivos”, respeitadas as legítimas e sujeitas à colação e à anulabilidade, sob fundamento de fraude a credores".

Entrementes, o instituto da partilha em vida, é mais vantajoso para os herdeiros e legatários, além de evitar a morosidade no Poder Judiciário. Não se dispensa, todavia, a orientação e expertise de um advogado especialista da área. Ademais, encontra-se vantagem também para o Estado no que tange ao recolhimento de tributos. Enfim, o planejamento sucessório deve ser pensado e realizado, ainda que seja um dos últimos atos da vida civil.


Referências bibliográficas:


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